Terras Devolutas e Terras Arrecadadas

Última atualização em 08/12/2020

1. Definições conceituais sobre terras devolutas

Até a instituição da Lei de Terras, em 1850, vigorou no Brasil, do ponto de vista jurídico, a noção de que o único proprietário fundiário era a Coroa. Todo o território brasileiro – habitado e desabitado, cultivado e inexplorado, indígena e português, urbano e rural – pertencia em última instância ao poder central. A única forma de acesso à terra, mesmo por outras instâncias públicas, como as câmaras municipais, era por alguma concessão pelo poder central, a mais usual sendo as sesmarias. Como concessão, a sesmaria implicava para o beneficiário condicionantes para sua validade. No caso das sesmarias rurais, a condicionante mais recorrente era a exigência de que a terra fosse cultivada. Se, em Portugal, onde o povoamento era muitíssimo mais compacto do que na colônia brasileira e onde mesmo o latifúndio tinha dimensões mais modestas, era factível um controle estatal sobre as condições das concessões de sesmarias, no Brasil esse tipo de fiscalização nunca passou duma ficção.

No seu sentido original, etimológico, terra devoluta significa aquela que, por descumprimento das cláusulas de concessão, reverteu, foi “devolvida” ao poder central. No Brasil, onde esse tipo de reversão não costumava ocorrer – a própria Lei de Terras procurou revalidar concessões que, a rigor, estariam caducas –, a expressão passou a significar terras que nunca foram objeto de concessão pelo poder público.1

Veremos no ponto seguinte as razões para a exigüidade das terras devolutas no Estado do Rio de Janeiro.

2. A exigüidade de terras devolutas no Estado do Rio de Janeiro

Excetuando-se o Distrito Federal, o Estado do Rio é a unidade da Federação com a maior densidade demográfica. Além disso, para padrões brasileiros apresenta povoamento bastante antigo por pequeno território. Já por volta de 1580 há uma cadeia de concessões nas planícies que vão do Recôncavo da Guanabara a Cabo Frio. O próprio fundador da cidade, Estácio de Sá doou em apenas um ano e meio nada menos que sessenta sesmarias, isto é, antes mesmo de os franceses terem sido expulsos e os tamoios derrotados.2 Em começos do século XVII, inicia-se o povoamento português na região, também plana, de Campos dos Goitacases; em começos do Setecentos, o ouro das Minas Gerais estimula a ocupação das zonas montanhosas, sobretudo as do Vale do Paraíba, que já por volta de 1840 é a região agrícola mais próspera do Império graças ao café. Assim, quando da promulgação da Lei de Terras em 1850, apenas zonas muito isoladas não apresentavam pródomos de povoamento. Contudo os mais tênues vestígios de ocupação territorial bastavam para justificar pedidos de sesmaria.

Exemplo muito ilustrativo dessa antecipação das sesmarias ao povoamento efetivo vemos no atual município de Petrópolis. Embora sua conhecida colonização alemã só date de 1845, essa região até hoje densamente florestada já havia sido totalmente retalhada em sesmarias na primeira metade do século XVIII. A essa altura, o escasso povoamento se resumia aos pousos e ranchos que abasteciam a rota entre o porto carioca e o interior mineiro – isso não impediu que mesmo esse tipo de atividade de pequeno porte fosse robustecida com concessões de sesmaria de légua em quadra, nada menos que 43,5 km².

Entre as múltiplas funções a que se propunha a Lei de Terras estava a de discriminar o domínio público do particular. No entanto, pouquíssimas terras foram identificadas como devolutas nos levantamentos que se fazem a partir de 1854. Segundo relatório da Repartição, na Província do Rio só haveria terras devolutas em Mangaratiba e em Parati.3 Levantamentos posteriores apontam um número mais significativo mas não muito amplo.4 Há duas ordens de motivos para essa exigüidade. A primeira, a falta de meios técnicos, registros cartoriais fiáveis e pessoal qualificado para empreender a colossal tarefa de discriminar e demarcar terras num país continental como o Brasil. O segundo, a própria metodologia que se adotou para os levantamentos que fundamentariam os registros fundiários: como regra, eram os particulares que, perante o pároco, declaravam o que e quanto lhes pertencia e se conheciam terrenos devolutos nas imediações. Obviamente era do interesse dos particulares, seja o latifundiário rico, seja o pequeno posseiro pobre, em negar a existência de terras que nunca tivessem sido apossadas. Consultando os livros que registram a correspondência entre o Presidente da Província fluminense e os diversos encarregados do levantamento fundiário patenteia-se que, além de raras, as terras devolutas, quando mencionadas, são logo alienadas em favor dum peticionário.

Essa exigüidade de terras devolutas reflete-se em territórios contíguos à província fluminense, ainda menos povoados e menos dinâmicos. Estudos quantitativos apontam que mesmo em três comarcas no Vale do Paraíba paulista em 1854, quando o café ainda não penetrara aí significativamente, o quantitativo de terras devolutas era irrisório.5

3. Processos de regularização fundiária no Iterj e as ações dicriminatórias

Em começos dos anos 1980, com o avanço a largos passos da redemocratização, conflitos fundiários, antes latentes pelo contexto repressivo da Ditadura Militar, afloram com mais vigor, para o que muito contribuiu a drástica crise econômica da “década perdida”. No Rio de Janeiro, com a eleição do governador Leonel Brizola em 1983, é criada em caráter emergencial uma Comissão de Assuntos Fundiários, logo convertida em Secretaria de Assuntos Fundiários, embrião, sob diversos nomes, do atual Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro.

Ao longo dessa década, as políticas fundiárias pautavam-se, sobretudo, no âmbito rural (em sentido largo) e na mediação de conflitos, principalmente quando havia violência e grilagem. Como regra, a demanda era gerada externamente, inexistindo uma política fundiária. Preponderavam duas formas de conflito que atraíam a intervenção do Estado: uma na qual posseiros de longa data começavam a sofrer pressões para abandonar a terra, geralmente quando o proprietário primitivo vendia a terra a outro fazendeiro que pretendia reconverter a agricultura à pecuária ou a empreendimentos imobiliários; e outro no qual movimentos sociais promoviam ocupações em fazendas reputadas improdutivas. O mecanismo recorrente de resolução dessas duas formas de conflito era a desapropriação da gleba. Como então a desapropriação para fins de reforma agrária competia exclusivamente ao Governo Federal, o Estado criava pretextos como necessidade de criar fazendas experimentais e até centros urbanos. Uma vez imitido na posse, os posseiros recebiam seus lotes como concessão de uso. Na prática, freqüentemente o Estado não pagava o valor da desapropriação, limitando-se a promessas de concessão de uso. Por conta dos múltiplos custos envolvidos nessa modalidade de resolução de conflito – o mais grave deles quando nunca se conclui o processo de desapropriação –, a partir da década de 1990 ela declina e praticamente desaparece a partir de 2000.

Provavelmente para contornar esses custos expropriatórios, é que ganhou ímpeto a alternativa das ações discriminatórias. Assim o Estado só incorreria nos custos da pesquisa fundiária para assegurar a permanência de posseiros ameaçados. Tão imbuído estava o administrador público da utilidade desse remédio processual que na Constituição Estadual de 1990 o artigo 248 (antigo 245), que trata das atribuições do Iterj, coloca já no seu primeiro inciso a promoção de “ações discriminatórias objetivando a identificação, de limitação e arrecadação de áreas devolutas, incorporando-as ao patrimônio imobiliário do Estado e divulgando amplamente seus resultados”. Mais adiante trataremos da efetividade dessa norma constitucional.

3.1. Praia do Sono

Em 1989, impetrou-se a primeira ação discriminatória do Estado para a Praia do Sono, em Parati. Além da própria Praia do Sono, onde há domicílios de caiçaras, a ação discriminatória, abrangendo 2.054,8 hectares, comporta também as praias dos Antigos, Pouso e Negra. Por volta de 1990, residiam ainda 150 famílias nucleares caiçaras, o número tendo declinado em função de conflitos fundiários que envolveram diversas violências desde a década de 1960: criação de búfalos soltos, constrangimento a assinatura de contratos de comodato, intimidação física. Os caiçaras estavam estabelecidos aí desde, pelo menos, o fim do século XIX.

A propositura deu-se pela Procuradoria-Geral do Estado, após estudos sobre o histórico de ocupação de Parati; cartas de sesmaria na região; livros paroquiais de terras; e topônimos em mapas antigos a fim de amarrar os referenciais das fontes escritas.6 A conclusão desse estudo foi não haver nenhum registro fundiário legítimo – quer sesmarial, quer legitimação de posse – que incidisse sobre a região entre a Praia do Sono e a Ponta Negra. Os registros cartoriais existentes apontavam para adulterações na década de 1950, rasurando-se a Praia do Sono como confrontante duma fazenda.

Apesar de o Iterj ter contribuído para esse estudo, realizado cadastramento dos moradores e trabalho em diversos processos administrativos (E-28/00029/87, E-06/14046/84 e E-02/150.614/03 e E-02/150.579/03), a ação discriminatória até hoje não chegou a termo.

3.2. Fazenda São Gonçalo, Parati

Também em Parati, há semelhanças nos conflitos fundiários que envolvem a Fazenda São Gonçalo, abarcando as Praias de São Gonçalo e São Gonçalinho. Em 2003, moveu-se ação discriminatória para a gleba de 10.783 hectares, 90% deles dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina (Ação Discriminatória N° 2003.041.001433-9) . A fundamentação do Estado para classificar as terras como devolutas é a existência de lacunas na cadeia sucessória e dominial da área. Outra vez, a propositura da ação foi apoiada por estudos do Iterj nos processos administrativos E-28/1126/91, E-25/000.121/99, E-25/100.438/99 e E-14/30222/01.

A tese defendida pelo Estado é que os diversos títulos fundiários de terras e sortes de terra adquiridos entre 1918 e 1921 pelo inglês Mike Sutton, que depois integralizou esse patrimônio na empresa White Martins Sociedade Anônima, não retrocedem àqueles pela primeira arrolados nos registro paroquiais de terras da década de 1850. Ademais, mesmo se admitindo a legitimidade desses títulos (afinal, os registros de terra no Brasil são tradicionalmente deficientes), os memoriais descritivos delimitam uma área inferior à que White Martins efetivamente veio a ocupar. Assim, enquanto a White Martins se arrogava uma testada contínua à linha de preamar com 7.136 metros, os títulos resultavam em 1.905 braças (cerca de 4.191 metros) descontínuos.7

Na década de 1960 também despontaram conflitos com os caiçaras, aí com mais gravidade do que na Praia do Sono, pois capangas da empresa não só mataram moradores como a comunidade foi efetivamente erradicada, indo instalar-se nas imediações. Ressalte-se que a cronologia, o tipo de conflito e a solução alvitrada pelo Estado se assemelham por homologias no processo histórico de ocupação da região de Parati. Fechada por serras, desde abertura do Caminho Novo para as Minas Gerais em começos do século XVIII, Parati entrou em decadência, agravada mais ainda com o declínio da cafeicultura. O isolamento e o declínio favoreceram o desinteresse paulatino de grandes proprietários, permitindo que a forma mais corriqueira de ocupação fundiária fosse a posse. Com a abertura da Rodovia Rio–Santos, cujas obras se concluem em começos da década de 1970, o acesso às belezas naturais de Parati foi muito facilitado, produzindo uma onda de conflitos fundiários e grilagem. Há quem tenha estimado estar registrado nas cartórios de Parati o dobro da área que o município dispõe. Metade dos conflitos registrados nas décadas de 1970 e 1980 concentraram-se nessa região.8

Por volta de 2005 a White Martins conseguiu se desvencilhar da Fazenda São Gonçalo, que foi adquirida pela São Gonçalo Empreendimentos Imobiliários e Urbanísticos Limitada. Essa firma propôs em 2018 um acordo, junto à Procuradoria-Geral do Estado, para extinção da ação discriminatória. O Iterj foi acionado e, após vistorias à área e conversas com a representante legal da São Gonçalo Empreendimentos, expediu sua posição, contrária à extinção da ação discriminatória nos termos propostos pela firma, uma vez que, no nosso entender, gerariam enormes impactos na localidade.9

4. Razões de serem poucas as ações discriminatórias

No Estado do Rio, só foram propostas duas ações discriminatórias. Além dos fatores históricos na apropriação da terra que já consideramos, essa escassa propositura de ações discriminatórias tem origem no descontrole do Estado, em todas as esferas, sobre seu patrimônio. Diversos trabalhos que se debruçaram sobre terras devolutas foram sendo perdidos dentro do caos arquivístico da máquina pública. A documentação do Departamento Geográfico, criado em 1946, desapareceu por inteiro, não só suas 2.500 aerofotografias, mas também seus estudos para colonização de terras devolutas. Igual destino teve a papelada da Comissão de Terras Devolutas, criada durante a gestão de Roberto da Silveira entre 1959 e 1961 quando os conflitos fundiários eram agudíssimos no Estado fluminense. Também desaparecidos estão os materiais que fundamentaram os estudos, elaborados por historiadores, sobre terras devolutas da Secretaria Extraordinária de Assuntos Fundiários em começos da década de 1990 que fundamentaram o excelente Atlas Fundiário.

Há entraves na capacidade de órgãos como o Iterj intervir mais ativamente. Conforme vimos, a Constituição Estadual amparava a procuradoria do Iterj na propositura de ações discriminatórias. Entretanto, a autarquia nunca veio contar com procuradoria própria como também a própria norma que a estabelecia foi fulminada recentemente por Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 241), proposta pelo próprio governador fluminense em 1990.

Acesse os dados disponibilizados pelo SIG ITERJ aqui.